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terça-feira, 26 de agosto de 2014

Tomaram a casa



Conto baseado no conto de Julio Cortazar: Casa tomada. 


texto e foto: marian pessah

Um casal de irmãos estava passando por um momento tenso. A recente perda da mãe, num acidente, tinha sido um fato traumático. Somava-se à inesperada dor, o fato que ela tinha deixado muitas dívidas, das quais ninguém tinha conhecimento, e perigavam perder a casa na qual morava a família há anos.

Na quarta-feira, à tarde, Irene e o seu irmão decidiram sair a caminhar e respirar um pouco de oxigênio. Iam pela Avenida Santa Fé, quando por alguma razão, decidiram entrar na Rua Rodriguez Peña. Naquela época, não havia ainda tantas construções e o sol aparecia mais facilmente entre as casas. Contudo, a amargura os deixava com um olhar triste, quase chegando ao chão. Ele amava a literatura francesa, mas também gostava de chutar pedrinhas na rua. E isso fazia. Aconteceu que uma foi bater direto num ralo e fez um barulho particular que chamou a atenção de ambos. Havia, nessa direção, uma chave fazendo equilíbrio entre dois ferrinhos. Olharam-se e sentiram a presença de Bará. Irene, sem duvidar a pegou. E se fosse de uma casa? E se alguém a perdeu? E se.... Minutos mais tarde, a ação se impunha por sobre as perguntas. Os irmãos testaram as fechaduras das casas daquela rua. Até que uma deu certo.

Ao abrir a porta, de forma vagarosa, sentiram uma presença estranha. Ouviu-se rapidamente um movimento interno. Decidiram continuar. Chamou a atenção a sujeira, o pó; contudo, a casa tinha aquela ambiguidade de se estaria sendo habitada por alguém. Decidiram percorrê-la. Era grande e espaçosa. Na entrada descobriram um tricô em andamento e um álbum de selos. Irene era apaixonada por tecer e pegou as agulhas que estavam fincadas num novelo, mas uma delas escorregou no chão. Imediatamente depois desse barulho, ouviram outro. Uma porta, nos fundos, fechava-se. Eles caminharam pelo corredor, viram dois quartos, a cozinha e o banheiro; entretanto, ainda não se animavam a abrir as portas fechadas. Um ar estranho, a déjà vu, os surpreendeu como uma fragrância em primavera. Era um cheiro de almas conhecidas. Essa era a primeira sensação positiva que ambos sentiam em tempos. O lugar os convidava a ficar. Novamente na sala, Irene descobriu, agora, um cachecol feito em um tecido cinza e ficou olhando para o ponto dele. O amante das letras optou por folhar o álbum. Assim ficaram horas, sem perceber o tempo passar. Quando a noite chegou, foram aos dormitórios. Cada um entrou no seu. Ela não tinha acabado de fechar a porta quando ouviu o irmão gritando. Imensa surpresa ao deparar-se com quinze mil pesos escondidos no armário! A vida era um círculo de emoções.

Na manhã seguinte, ao levantar, foram fazer umas compras. Encheram dois cestos; um de comida, outro, de produtos de limpeza. A partir desse momento, tirar a poeira viraria uma obsessão para os novos habitantes da casa. Cozinhavam, limpavam, davam risadas. Estavam muito bem e pouco a pouco começaram a não pensar. Pode-se viver sem pensar.

Todavia, de noite, Irene pronunciava palavras enquanto dormia, em voz muito alta; e o irmão, tinha sonhos que consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Os seus quartos estavam separados por um salão no meio. À noite, ouviam-se outros barulhos. Decidiram que já era hora de abrir a porta dos fundos.

De manhã, cedo, prepararam o café e fizeram muito barulho, falaram forte e até Irene cantou canções de ninar. Era um aviso.

Quando terminaram de comer, lavaram a louça e deixaram tudo pronto, como quem se prepara para uma grande cerimônia. Foi nesse momento que decidiram tomar a grão decisão: abrir a porta dos fundos. Fizeram-no intempestivamente. Ouviram-se uns barulhos. O som de passos curtos e riscados afastava-se do lugar.  A casa aumentava de tamanho em enormes proporções. Agora, somavam-se três quartos grandes, e o principal, uma biblioteca! O amante das letras não cabia em si de tanta alegria, e ainda nem havia visto a vasta literatura francesa que o antigo morador possuía. Por outra parte; a irmã, achava numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases. Evidentemente, nessa casa, haviam vivido suas almas gêmeas. Agora, a casa era tão grande que poderiam morar nela, oito pessoas sem se estorvarem umas às outras.

 Além de ser espaçosa, guardava lembranças de outrora. De um passado; como de um futuro, ainda por descobrir.

Última imagem. Ao abrir a porta de um dos quartos, como uma fotografia, um rato roia um chapéu militar. Justiça estava sendo feita.